O MISTÉRIO DA ORIGEM DA POMBA-GIRA: ENTRE ÁFRICA, ENCRUZILHADAS E O CAIS DO VALONGO

Tradição afro-brasileira revela as raízes do culto da Pomba-gira, ligadas às práticas de escravizados, encruzilhadas e achados históricos no Rio

Ilustração / SpingRV Noticias


 A origem da Pomba-gira mistura ancestralidade africana, oferendas em encruzilhadas e achados do Cais do Valongo, marcando a força das religiões afro-brasileiras.

O culto da Pomba-gira desperta fascínio, mistério e também preconceito. Muitos a conhecem como a guardiã das encruzilhadas, associada ao amor, à sedução e ao poder feminino. Mas afinal, de onde vem esse termo e essa entidade que se tornou tão presente nas religiões afro-brasileiras?

Pesquisadores apontam que a palavra correta é Pomba-gira – e não “Pombo-gira” – tendo origem em tradições banto. A raiz estaria em nomes como Bombogira ou Mbombojira, ligadas a divindades femininas angolanas e congolesas. O termo se transformou no Brasil e ganhou força especialmente a partir do século XIX.

A presença da Pomba-gira se consolidou na Umbanda, onde ela aparece como espírito feminino de grande poder, que transita entre os mundos, abrindo caminhos e atuando nas encruzilhadas ao lado de Exu. No Candomblé, embora o foco seja a adoração dos orixás, sua figura também é reconhecida em certos contextos.


LINHA DO TEMPO – ORIGENS DO CANDOMBLÉ, POMBA-GIRA E PRÁTICAS AFRO-BRASILEIRAS

Ilustração / SpingRV Noticias

  • Séculos XV – XVI: Início do tráfico negreiro. Povos iorubás, bantos e jejes são trazidos ao Brasil, trazendo tradições religiosas, orixás, nkisis e voduns.

  • Séculos XVII – XVIII: Nos engenhos e senzalas, escravizados recriam rituais em segredo. Para escapar da perseguição, associam orixás a santos católicos.

  • Século XVIII: Registros coloniais já mencionam práticas de feitiçaria em quilombos e áreas urbanas.

  • Século XIX: O Cais do Valongo (RJ) recebe milhares de africanos escravizados. Escavações arqueológicas encontraram bonecos, contas e recipientes ligados a práticas religiosas.

  • Meados do século XIX: A palavra Pomba-gira aparece em relatos orais e documentos policiais sobre rituais de feitiçaria. O termo deriva de “Bombogira” (tradições banto).

  • Século XIX (finais): Práticas de oferendas em encruzilhadas se espalham. Alguns historiadores apontam ligação com escravizados que deixavam alimentos para fugitivos nas trilhas.

  • Início do século XX: A Pomba-gira ganha espaço na Umbanda, sendo vista como espírito feminino ligado ao amor, à sexualidade e à abertura de caminhos.

  • Século XX em diante: O Candomblé se estrutura como religião afro-brasileira consolidada, e a Umbanda fortalece a presença da Pomba-gira como entidade de consulta e oferenda.


ENTRE O SAGRADO E A HISTÓRIA

Um dos pontos mais curiosos é a prática das oferendas nas encruzilhadas. Além da tradição africana de cultuar guardiões dos caminhos, existe a hipótese de que essa prática foi influenciada pelos tempos da escravidão. Escravos fugitivos se escondiam nas matas, e outros, em solidariedade, deixavam alimentos nas trilhas para garantir sua sobrevivência. Com o tempo, esse gesto se tornou parte do imaginário religioso e espiritual.

Outro marco fundamental é o Cais do Valongo, no Rio, considerado o maior porto de entrada de escravizados das Américas. Objetos encontrados no local, como bonecos e contas, reforçam a presença de práticas religiosas africanas já no século XIX, resistindo mesmo em meio à repressão.


POMBAS-GIRAS: SÍMBOLO DE FORÇA E RESISTÊNCIA

Hoje, a Pomba-gira é vista não apenas como uma entidade ligada à sedução e à sensualidade, mas como símbolo de força feminina, liberdade e resistência cultural. Para muitos terreiros, ela representa o poder espiritual que transgride normas, quebra preconceitos e protege os que a procuram em busca de caminhos abertos, justiça ou solução para questões emocionais.

Mais do que um mito, a Pomba-gira reflete séculos de luta e sobrevivência da espiritualidade africana no Brasil. Sua história se conecta com a dos povos escravizados, das mulheres marginalizadas e das comunidades que, mesmo reprimidas, mantiveram suas tradições vivas até os dias de hoje.


*Atenção: As imagens utilizadas nesta matéria são ilustrativas.

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